Psicólogos tem argumentado que livros para colorir não são terapêuticos. Será? Tudo vai depender do conceito de terapia. Entenda o problema.
Olá amigos!
Recentemente, vimos surgir a moda dos livros para colorir, um verdadeiro fenômeno editorial, com diversos best-sellers. É só ir até uma grande livraria ou a sites famosos que vendem livros para vermos que as vendas são e continuam sendo altas.
Na nossa área da psicologia, entretanto, existe uma certa crítica à promessa estampada em algumas capas destes livros para colorir: a promessa de ser terapêutico. Psicólogos argumentaram que colorir não é o mesmo que fazer uma terapia, porque não há a elaboração de conteúdos e não há a produção de novos conteúdos. Ou seja, as formas já foram desenhadas e o fato de apenas preencher as formas com cor não traria um benefício conforme o esperado. Na verdade, ao invés de desestressar e produzir calma e paz, para muitas pessoas estaria tendo o efeito inverso, ou seja, estava causando mais estresse.
Estas críticas fazem sentido. Mas afinal, será que estes livros são mesmo terapêuticos? Será que alguém pode extrair deles algum benefício? Vamos pensar juntos.
Afinal, livros para colorir são terapêuticos?
Conforme aprendemos com Sócrates não devemos começar pelos exemplos, ou melhor, os exemplos fazem parte da análise, mas temos que chegar primeiro ao conceito. O que significa ser terapêutico?
Se o conceito de terapêutico estiver vinculado a falar sobre os próprios conteúdos psíquicos, como em uma psicoterapia, e se restringir a apenas esta delimitação, evidentemente, os livros para colorir não serão terapêuticos.
Mas toda e qualquer terapia se resume à psicoterapia? E quanto à arte-terapia, musicoterapia e terapia ocupacional?
Bem, eu não sou especialista em nenhuma destas três áreas e, por isso, vou deixar a possibilidade dos especialistas comentarem. Porém, o autor que estudo no meu doutorado, Carl Gustav Jung, o criador da Psicologia Analítica foi um autor importante para o desenvolvimento destas áreas porque ele expandiu (desde 1916) o escopo da psicoterapia.
Terapia: entre a ética e a estética
No texto A função transcendente, Jung define esta função como “a união dos conteúdos conscientes e inconscientes” (JUNG, p. 1). Os conteúdos do inconsciente podem ser acessados pelos sonhos ou por fantasias espontâneas durante a análise. Contudo, em certos momentos e para certas pessoas, as fantasias não aparecem tão espontaneamente. De modo que é preciso um artifício chamado por Jung de imaginação ativa.
Ele escreve: “Os pacientes que tenham talento para a pintura ou o desenho podem expressar seus afetos por meio de imagens. Importa menos uma descrição tecnicamente ou esteticamente satisfatória, do que deixar campo livre à fantasia, e que tudo se faça do melhor modo possível” (JUNG, p. 15).
Além do tipo visual, de certa forma antecipando a PNL, Jung fala de tipos visuais, auditivos e aqueles que preferem acessar o seu inconsciente com as mãos. O que significa que ele abre possibilidade para a escrita (monólogos ou diálogos, tipo auditivo) e também para a escultura e a dança (cinestésico).
A questão em que queria chegar é: o que fica do que surgiu deste processo de imaginação ativa? Jung tem duas respostas:
– um sujeito pode ir na direção da formulação criativa.
– um sujeito pode ir na direção da compreensão.
Assim, uma pessoa que for mais ligada à estética tenderá a avaliar o produto da sua imaginação através de perguntas ligadas à beleza das formas, se ficou bonito ou se ficou feio, se ficou harmônico ou se ficou desarmônico, se ficou agradável ou desagradável. Lembrando que estética vem do grego αισθητική – aisthésis: percepção, sensação, sensibilidade.
E outra pessoa não vai se perguntar sobre a beleza (ou feiura). Ela vai pensar no significado do que produziu. Não o significado filosófico propriamente dito, do que é a coisa, e sim o significado daquele conteúdo para a sua vida, para a sua felicidade, bem-estar, para o que aquilo se relaciona com o seu sintoma, com o seu sofrimento. Em outras palavras, estará fazendo perguntas éticas.
Veja também – 9 Razões para fazer terapia segundo Jung
Então, colorir é terapia?
Se pegarmos a ideia de Jung para imaginação ativa, veremos que um componente importante é que cada um deve criar o seu próprio conteúdo. O Livro Vermelho, que Jung escreveu, é um livro exemplo de como funciona o processo. Ele escreve diálogos, cenas inteiras e desenha, um processo ao longo do qual ele acessa os seus próprios conteúdos.
Assim, realmente, se definirmos a terapia como o acesso e elaboração dos conteúdos individuais, colorir uma forma já previamente estruturada não seria terapêutico.
Porém, ao menos em minha análise, penso que não precisamos ser tão radicais. O processo de colorir é semelhante a tocar uma música de um outro compositor. Se eu aprendo a tocar violão, piano ou qualquer outro instrumento, eu posso me tornar um excelente instrumentista, sem nunca criar uma única melodia. De modo que tocar uma música de outra pessoa é terapêutico? Criar uma mandala pré-determinada com areias coloridas como fazem os budistas ou desenhos no Corpus Christi é terapêutico? Dançar uma coreografia pronta ou uma dança previamente delineada pela cultura – como um samba – é ou não é terapêutico?
De novo, caímos no problema do conceito. Se terapêutico estiver estritamente vinculado à produção de novos conteúdos, quer dizer, de certa forma relacionado com a originalidade, estas atividades não seriam terapêuticas. Portanto, um compositor poderia se beneficiar da produção de sua música, enquanto que quem ouvir ou reproduzir, não.
Todavia, se não vincularmos a ideia de terapia apenas à originalidade, poderemos chegar a uma visão mais ampla do que deve ser incluído ou excluído.
Se eu pego um desenho para colorir e coloro do meu jeito, isso não seria original? (Na psicoterapia de crianças, a escolha do jogo e o modo como a criança joga não é um fator a ser levado em conta no diagnóstico?) Se eu coloro e através do colorir eu passo a acessar, com as cores, o que eu estou sentindo, isso não seria terapêutico, não me traria autoconhecimento?
Por exemplo, digamos que alguém esteja se sentindo mal e utilize apenas cores próximas ao cinza (que tipicamente estão ligadas à tristeza). Ora, as cores não teria um significado, tanto estético como ético?
Se eu começo a colorir e percebo que quero desenhar minhas próprias formas, o livro não terá me ajudado a começar?
Se eu coloro e passo a perceber que a vida não é apenas em função de um objetivo – a arte não tem finalidade – isso não seria um benefício para mim?
Conclusão
Imagino que não haverá consenso entre os profissionais da área psi quanto a este problema. Isto porque, como é de costume, não há consenso sobre a definição de conceitos. Por isso temos várias psicologias e não apenas uma única.
Eu, particularmente, penso que estes livros podem ser úteis sim. Úteis para mostrar para as pessoas que é possível fazer algo sem uma finalidade, um objetivo. Podem trazer lembranças da infância (quando o pintar e o colorir existiam) e podem relaxar, acalmar, distrair, embora possam também fazer o contrário.
A minha opinião é de que tais livros podem ser como uma ponte para o acesso a conteúdos mais profundos, para a criação de materiais originais, particulares e peculiares. Mas, ainda que não seja uma ponte, é algo que mostra a reação de cada um dada uma atividade. Se uma pessoa fica estressada, não é o desenho que a deixou estressada…
Dúvidas, sugestões, críticas e comentários, por favor, escreva abaixo!
Bom dia!
Quero aqui fazer comentários.
Sobre essa nova modalidade, digamos uma forma um tanto superficial de se fazer a arte, eu realmente tenho minhas dúvidas. Com relação aos conceitos sobre essa prática pode-se pensar que seja uma forma do indivíduo se desligar em alguns momentos da sua realidade, trabalhar a concentração ao permanecer pintando depende muito do seu estado emocional/mental.
Essa seria uma visão sem muitas divagações, o tema arte é muito amplo e dá margens para varias interpretações, deve-se saber que nestes livros também existem espaços para criações, claro baseando-se em um modelo prévio. Neste aspecto quando pode-se dar continuidade a algo o indivíduo poderá expressar suas capacidades cognitivas se esforçando um pouco mais para isso, o que é muito bom!
Entre aspectos positivos e negativos ainda prefiro acreditar que toda forma de “arte” é válida e tudo depende do momento e necessidade de cada indivíduo. As coisas estão sendo postas ou impostas constantemente neste mundo, a questão para nós psicólogos/psicoterapeutas é termos consciência dos conceitos reais e acredito que o texto acima foi bem claro. Por fim sempre podemos refletir mais para podermos ter argumentos eficazes.
Bem esclarecedor este texto. Quero portanto lembrar que, sob o ponto de vista do estresse, o fato de uma pessoa ficar concentrada numa atividade como esta, faz com que a pessoa fique desligada da correria e excesso de preocupação que hoje faz parte da vida de todos nós. Assim, segundo a técnica da atenção plena do Mindfulness, o objetivo desestressante pode ser atingido, mas claro, isso depende de como cada um se dedica a esta tarefa.
Sônia Miguel
Muito esclarecedor, também cheio de dúvidas. Parabéns.
O livro pode ser um refugio do que causa o stresse. O colorir sem obrigação, desliga a mente da correria do dia a dia . O problema é quando as pessoas se determinam a colorir como um vicio, querendo superar imagens dos outros e etc. Enquanto a pintura for apenas uma diversão, sem pressões ou obrigações, será algo válido e benéfico.
Felipe boas pontuações, deixo essa questão: “No universo das Terapias Expressivas, não é a obra artística que interessa, nem a sua qualidade estética, mas sim, a atividade criadora, a vivência, a expressão em si e as consequências emocionais desencadeadas por esta experiência. A expressão tem valor apenas enquanto dura sua ação e apenas para quem se expressa.” Trabalho com as terapias expressivas que ampliam o horizonte da arte e da psicologia. Talvez tudo seja terapêutico quando se faz por uma finalidades, mas nem tudo trabalha com os conteúdos como você tão bem expressou “Se o conceito de terapêutico estiver vinculado a falar sobre os próprios conteúdos psíquicos, como em uma psicoterapia, e se restringir a apenas esta delimitação, evidentemente, os livros para colorir não serão terapêuticos.”
Estamos falando de psicoterapia, de algo que a pessoa tem e deseja conhecer… bom a discussão é boa.. mas fico por aqui.
Grande abraço
sucesso sempre.
Pra mim pintar é uma distração como um hobby, adoro as cores e o que posso criar com elas, assim como ler um bom livro, praticar um esporte, o importante é como eu faço estas atividades, o que cada uma delas acrescenta na minha vida, são atividades em nossa vida que podem evitar uma terapia.
Olá Felipe!
Coincidentemente, algumas pessoas tem-me perguntado se esses livros funcionam como terapia. Eu, não por acaso, estou iniciando meu tcc sobre arteterapia e o primeiro livro que pretendo ler é o Livro Vermelho do Jung e vou estudar as disciplinas “Compreensão dos elementos e da linguagem pictórica” e “Estudo dos elementos representativos do desenho”, no próximo período. Aí então, vou poder me posicionar melhor sobre os livros para colorir. Atualmente, penso que algumas atividades, como o colorir, podem entrar na vida da pessoa como uma ocupação, fazendo com que o indivíduo se acalme, deixando de estar com pensamentos repetitivos, ou, ao contrário, pode irritá-lo profundamente. Considero que, para ser de fato terapêutico esta atividade precisa ser vista com os olhos e o acompanhamento de um terapeuta para o aprofundamento das questões que, como você bem colocou, “…estes livros podem servir como uma ponte a conteúdos mais profundos”… e, parabéns pelo texto!
Abraço,
Malu
Acho engraçado que esses livros pra mim caíram no momento certo!hahaha Eu sou novinha e a minha primeira tentativa de profissão foi design e eu descobri como cobranças, prazos e ter que criar algo pensando num público alvo afetava demais a minha criatividade e o quanto a atividade se tornava desprazerosa pra mim! Então abdiquei do design. Quando eu era criança eu amava desenhar e odiava pintar. Hoje eu já não tenho mais paciência para criar desenhos e toda vontade que não tive de pintar na infância eu tenho hoje em dia! E olha que eu também faço terapia e a minha psicóloga disse que a vontade de colorir vem da vontade de atribuir significados as coisas! E eu AMO flores desde de criança, então esses livros de jardim secreto são a coisa mais linda que eu posso ver nos meus finais de semana!hahaha Eu sou bem cinestésica e estética, mas me permito numa mesma página fazer vários testes de cores e criar novas cores inclusive, claro que sai muito resultado desarmônico disso e isso me incomoda, mas isso não me incomoda a ponto de desistir, eu penso “tento diferente na próxima flor” e assim vou estudando as cores que tenho pra pintar melhor nas próximas páginas!l Acho que o livro se torna terapêutico se a pessoa estiver com vontade de pintar e a forma como a pessoa em si interpreta essa atividade!
Muito bom! Infelizmente, em qualquer área haverá engessados. Os famosos registros de diplomas, que dão ao profissional habilitação para exercer sua profissão, deixa-o engessado de forma a pensar com um “tapa” na cara. O cavalo de carroça é obrigado a usar um “tapa”, um dispositivo de couro que é posicionado ao lado dos seus olhos, obrigando-o a olhar apenas para frente, ele vai olhar sempre adiante, perdendo totalmente sua visão periférica. Assim são os profissionais “registrados” nos conselhos reguladores de suas profissões. Mesmo que pensem abertamente sobre alguma questão, não podem pronunciar, do contrário perdem o registro.
Ficar ai com picuinhas sobre o que é ou não de acordo com o risco exato, a definição literal de algo que é livre. Vivemos em um tempo onde a “nóia” está generalizada.
Artigo muito instrutivo. Parabéns pelo trabalho!
Acredito que qualquer Hobbie é terapêutico, se escrever lhe ajuda a desinformar seus problemas e cria-los em poema, então automaticamente seu estresse estará sendo desfeito e sendo ressignificado como arte. Se cantar, jogar futebol, ir ao parque te faz ressignificar seu estresse e transformá-lo em algo novo, então sim, é terapêutico. A terapia é extremamente adaptável e única para cada indivíduo. Então a resposta é, sim, livros para colorir são terapêuticos, se seus problemas se transformarem em cores.
Adorei este artigo, vai me ajudar muito a entender esta vontade que me deu de pintar desenhos já preexistententes e não achar que é perda de tempo, aproveitando e sendo livre pra me entender melhor! Muito Obrigada!