Certa vez, estava engajado em pesquisar a compreensão de religião nas obras de Jung quando me deparei com esta afirmativa: “O homem ocidental é cristão, independentemente da religião à qual pertença.” (C. G. Jung).
Coloquei-me a pensar – “Como pode este ousado autor ter o disparate de concluir tal coisa?” Entretanto, atirar a primeira pedra de nada vai me servir se não conhecer antes, o que estou criticando, e qual é o contexto a que se remete esta afirmativa. Portanto, vamos pesquisar.
A princípio, devemos desconsiderar o cristianismo aqui como uma profissão de Fé, Jung não está se referindo a um credo religioso, mas antes, a um modo de pensar tipicamente cristão ocidentalizado.
Como homens ocidentais, sempre estaremos à sombra das figuras de Cristo e de um Deus uno.
Querendo ou não, Cristo é um marco na nossa história, ele é o mito ainda vivo de nossa civilização, é por causa dele que nosso calendário é organizado. Ele é o herói de nossa cultura, o qual, sem detrimento de sua existência histórica, encarna o mito do homem primordial.
Cristo vem para reatar o vínculo entre Deus e o Homem, ele é a figura central de mediação que pode restabelecer o contato do individuo com Deus.
Tomemos agora como base, o Budismo. Temos na figura de Sidarta Gautama a imagem de um homem que, não possui divindade, e que abre mão de um privilegiado status social a fim de dedicar sua vida na árdua busca por respostas, atingindo o estado Budico de iluminação através da prática espiritual da meditação.
“Buda é um de nós, que pela capacidade (egóica) de julgamento e discernimento, seu próprio esforço, concentração, paciência, persistência, compaixão e pela meditação, chega ao conhecimento pleno de si mesmo (Iluminação) e de todas as coisas”. (Joel Salles Giglio, s/d, s/p).
Mas, em que esse dois símbolos influenciam na forma como nosso pensamento é estruturado?
Para Jung (2011, p. 18) “O Ocidente cristão considera o homem inteiramente dependente da graça de Deus ou da Igreja na sua qualidade de instrumento terreno, exclusivo da obra de redenção sancionada por Deus”.
Aqui encontramos um ponto interessante. Na visão de Jung, a figura de um Deus que é um ente separado do homem, do qual é considerado o absoluto, dotado de perfeição, fez com que o homem ocidental voltasse seu olhar para o que é exterior a si próprio.
Decorrente disto surge em nós um ideal, ou seja, de que o homem só se realiza com aquilo que for exterior a ele, como no caso: conquistas profissionais; ser bem sucedido; arrecadar mais e mais dinheiro. Está impregnada em nós a ideia de que: tudo que é bom vem de fora.
Por outro lado, o Ocidente “sublinha o fato de que o homem é a única causa eficiente de sua própria evolução superior; o Oriente, com efeito, acredita na ‘autoredenção’”. Os métodos contemplativos e meditativos se preocupam e despertar no homem oriental que: tudo que é bom vem de dentro.
A introspecção e a contemplação do interior do homem são amplamente desvalorizadas nos costumes ocidentais, o que torna qualquer prática que exerça este método contraditório ao pensamento ocidental e muito mais difícil de ser aplicado.
Assim, o comportamento ocidental é sempre modelado para impulsos de realização plena no mundo exterior. Essa meta, que está enraizada em todo povo ocidental, fere completamente os ideais de uma cultura oriental, onde: “É a partir de dentro que devemos atingir os valores orientais e procurá-los dentro de nós mesmos, e não a partir de fora.” (JUNG 2011, p. 21).
“A introversão é, se assim podemos nos exprimir, o estilo Oriental, ou seja, uma atitude habitual e coletiva, ao passo que a extroversão é o estilo Ocidental.” (JUNG, 2011, p. 17-18).
Esta diferença de tipo marca profundamente tanto as práticas religiosas, quanto a forma de se conceber a organização em sociedade. Enquanto uma se preocupa com uma divindade exterior, de extrema grandeza e poder, na outra, esta grandeza está dentro do próprio homem, e precisa ser liberada com a anulação do eu, permitindo o surgimento de um estado superior de consciência.
Talvez ai esteja o ponto central que torna tão complicado a adoção de uma filosofia oriental de vida, ou seja, ideia da consciência. Para o oriental, o estado superior de consciência é atingido com a perda do eu, essa ideia é completamente inconcebível para uma estrutura de pensamento ocidental, hora, pois, se não existe um eu para se tornar consciente, não há como se vivenciar algo.
Portanto, o eu é imprescindível em todo e qualquer processo de conscientização para o pensamento ocidental. “O fato do Oriente colocar de lado o eu com tanta facilidade parece indicar a existência de um pensamento que não podemos identificar como o nosso “espirito”. No oriente, o eu desempenha certamente um papel menos egocêntrico que entre nós”. (JUNG 2011, p. 22).
Certamente, o espirito oriental só pode ser copiado quando este se adapta ao estilo ocidental, deste modo, qualquer prática filosófica vindo do oriente só pode se adequar em partes ao modo de vida ocidental, pois em outras, ele nunca será plenamente alcançado.
Os valores vindos do oriente sempre serão visto a partir de uma perspectiva e um modo de vida ocidentalizado. “Se nos apropriarmos diretamente dessas coisas do Oriente, teremos de ceder nossa capacidade ocidental de conquista”.
Jung complementa a frase acima com a seguinte crítica, “[…] com isso estaríamos confirmando, mais uma vez, que ‘tudo que é bom vem de fora’, onde devemos busca-lo para nossas almas estéreis”. (JUNG 2011, p. 20)
Referências:
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião oriental. O.C. vol. 11/5. Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes, 4° edição. 2011
GIGLIO, Joel Salles. Psicologia Analítica e Relações com a “Psicologia Oriental”.
Excelente texto!!
Não estudei muito para poder comentar, mas tudo bem.
Eu acredito que, tanto o oriente como o ocidente estão desequilibrados em termos de religião. Pois o caminho sempre é o equilíbrio da matéria com o lado espiritual “nem tanto o céu nem tanto o mar”. O oriente se preocupa muito com o lado interior da pessoa, a percepção de si mesmo e do cosmos, porém viver só de espiritualidade é viver alheio as coisas terrenas, e a nossa forma de viver é terrena, nossos afazeres, rotina de trabalho, preocupações materiais. Já o nosso lado, o ocidente, se preocupa mais com o que está fora de nós mesmo, ou seja, o trabalho, a rotina, os compromissos diários e não se pára muito para elevar sua consciência ou da percepção de seus próprios pensamentos e sentimentos que estão fazendo mal. A questão é justamente essa: o equilíbrio entre o ocidente e o oriente, o nosso lado prático da vida, com o nosso lado espiritual. Tanto faz mal quem pratica demasiadamente a meditação, como pra quem só pensa demasiadamente em seus problemas de trabalho, pessoais, etc.
Valeu,
Exatamente Yasmin! :)
Muito bom o artigo, excelentes apontamentos.
Agora quanto ao comentário da Yasmin, concordo em parte. É um pouco perigoso dizer que as religiões orientais se preocupam mais com o lado “interior” e que este está distante ou apartado da realidade material. De fato, há um grau de interiorização em grande parte das religiões orientais, mas que não exclui o seu entorno. Na verdade, essa interiorização abre uma oportunidade para encarar a vida de uma outra forma, para (res)significar as coisas de modo diferente, para ter as suas experiências de modo livre, mas com um grau de desprendimento sábio e sadio – incluindo um desprendimento da sua própria história pregressa (aqui no Ocidente, temos a psicoterapia como um exemplo para auxiliar nesse processo – mas que não deve ser comparado como equivalente, pois são coisas bem distintas). O grande problema que temos nesse sentido é que as traduções e equiparações de termos e constructos orientais se diferem muito dos ocidentais. Por exemplo, “anatta” (não-eu) não é especificamente uma dissolução do eu, tal qual como compreendemos no Ocidente e por aí vai.
Outra coisa também é dizer que as duas formas são desequilibradas. Isto é muito arriscado, pois há que se pensar que cada forma de vivenciar, de compreender e atuar nessas experiências é válida – desde que feita de modo sadio. É aquela velha história que diz que não importa o “Caminho”, desde que todos levem para o esmo lugar (e é aqui que deve-se falar da função do “religare” das religiões).
Além disso, há que se perceber as mudanças ocorridas em detrimento da globalização – é só acompanhar o movimento do Zen Budismo, por exemplo, e ver como ele foi apropriado pelo ocidente e encaixando-se no próprio “estilo de vida ocidental”. É claro que há uma certa distância nesse processo de apropriação, pois é impossível uma apreensão abrangente e total. Todavia, o reconhecimento desse limite entre as linguagens do Ocidente e Oriente não impede de realizar uma busca de compreensão entre ambos.
Em resumo, o que se pode dizer é que cada um, tanto o Ocidente quanto o Oriente, podem se beneficiar do intercâmbio de seus ensinamentos e práticas. No entanto, há um limite para isso: um ocidental que volta o seu olhar para o Oriente sempre será um “ocidental voltado para o oriente” e vice-versa.