Uma das grandes dúvidas que podemos ter na vida vem da questão: “Quem sou eu?”. O nosso modelo de concepção do que é o eu, entretanto, é muito diferente da concepção de outras culturas, como a cultura chinesa, hindu ou japonesa.

Nós criamos e alimentamos um eu forte. O eu é o centro e a essência de nossas vidas. Claro que é uma concepção importante e tem o seu valor. Mas grande parte do nosso sofrimento está ligado à esta concepção de eu. Em outras palavras, “sem eu, não há sofrimento”. Ou seja, sem um eu forte – que traz egoísmo ao invés de altruísmo – o sofrimento diminui.

Por isto dizemos que pimenta nos olhos dos outros é refresco. Porque? Porque o sofrimento do outro – que é um outro e, portanto, um não-eu – é pequeno, é menor que o meu sofrimento, que o sofrimento do meu eu. Se no que vivo e vivi, não colocasse tanto eu, com certeza o sofrimento seria menor. Se olhasse a passado com mais objetividade, com menos eu, com menos ego (ego é a palavra eu, em latim e grego), sem tanto ego… o sofrimento seria refresco.

Mas, voltando ao que estava dizendo no início: outras culturas possuem outras formas de ver o mundo, de ver as coisas, de ver o eu. São outros padrões, outros valores, outros paradigmas, outras visões de mundo. Só para que possamos comparar a nossa visão do eu, com a visão oriental, vou contar uma história, retirada do zen-budismo:

Um Imperador, sabendo que um grande sábio Zen estava às portas de seu palácio, foi até ele para fazer uma importante pergunta:

– Mestre, onde está o Eu?”

O mestre então lhe pediu:

– Por favor, traga-me aquela carroça que está lá.

A carroça foi trazida. O sábio perguntou:

– O que é isso?

– Uma carroça, é claro – respondeu o Imperador.

O mestre pediu que retirasse os cavalos que puxavam a carroça. Então disse:

– Os cavalos são a carroça?”

– Não.

O mestre pediu que as rodas fossem retiradas.

– As rodas são a carroça?

– Não, mestre.

O mestre pediu que retirassem os assentos.

– Os assentos são a carroça?

– Não, eles não são a carroça.

Finalmente apontou para o eixo e falou:

– O eixo é a carroça?”

– Não, mestre, não são.”

Então o sábio concluiu:

– Da mesma forma que a carroça, o Eu não pode ser definido por suas partes. O Eu não está aqui, não está lá. O Eu não se encontra em parte alguma. Ele não existe. E não existindo, ele existe.”

Dito isso, ele começou a se afastar do surpreso monarca.

Quando estava já afastado, voltou-se e perguntou-lhe:

– Onde Eu estou?

Comentário

Se dizemos que o eu é uma ficção, uma realidade, mas uma realidade apenas existente em nossa mente, em nosso pensamento – podemos ouvir a seguinte resposta:

– Mas eu estou aqui, não estou? O meu eu é este corpo! Você não me vê aqui?

Sim, claro que te vejo.

Mas o que é o corpo?

A medicina já comprovou que a cada 7 anos quase todos as moléculas que estão com você neste momento não estarão mais (mais de 95% do seu corpo estará em outra parte do universo daqui a sete anos)…

O corpo é impermanente: um hora é bebê, outra hora é adulto, na hora seguinte é velho… que essência tem o corpo?

Tem a essência da impermanência.

E se eu fosse o meu corpo, o que eu seria depois de morrer? Nada? Essa parece ser a solução materialista. O eu é o corpo.

Outra resposta poderia ser: eu sou a minha história, minha memória, o que vivi e vou viver.

Sim, é verdade.

Mas a história é também impermanência. A própria definição de história é isso: sequência de eventos sem fim, sem centro, sem unidade…apenas mudança e mudança e mudança…

(Por isso mesmo, Aristóteles via que a história não podia ser uma ciência, já que a ciência deveria ser o conhecimento do que permanece fixo, permanece o mesmo).

Como na história do eu e da carroça…

O eu está em vários lugares (no chamado corpo, na chama alma ou história de vida)…e não está em nenhum…

É um conceito criado por nós, pela nossa cultura…

A realidade é uma realidade fluida…em constante mudança, sem fixidez, nada está parado…E nem que seja por egoísmo é interessante as vezes deixar o eu de lado…o nosso imenso e grandioso eu…