Para diversos autores da filosofia e da ciência da religião, vivemos em um mundo no qual o Mercado é visto como um Absoluto dotado de características de divindade onisciente, onipresente e onipotente, com ritos inerentes, sacerdotes, dogmas e mensagens de salvação.
Introdução
Durante vinte anos, Mo Sung, outros filósofos e cientistas da religião tomaram o comércio do sagrado como objeto de análise. Esta retomada do sagrado pelo pensamento pós-moderna faz-se necessária em razão da convocação para se voltarem novamente ao que seria o estatuto essencial das religiões: anunciar a transcendência de Deus, para que, então, os seres humanos não se esqueçam de sua condição, não absolutizem as instituições sociais – inclusive o mercado – percebendo seus limites, tanto limites de ação quanto de poder criador (pois a capacidade humana de criar o caos e destruir é ilimitada).
Temos por objetivo neste texto, expor esta discussão acerca da dominação e divinização do Mercado, bem como os impactos desta nova religião para o Outro, isto é, para o homem vitimado e excluído e sacrificado em benefício deste novo Deus.
O Mercado e o Outro: a relação entre o novo Deus e suas vítimas
Através da absolutização do mercado, tomado como algo exterior à experiência religiosa e como algo humano, pode-se explicar a utilização da religião como instrumento econômico. Esta é opinião defendida pelo teólogo católico e cientista da religião Jung Mo Sung, que concebe o mercado como transcendentalizado, acima da condição humana, por ser visto como condição absoluta. A perspectiva deste autor culmina na explicação do fato da religião do Mercado estar e permanecer na moda, tanto no âmbito pessoal, subjetivo quanto em âmbito empresarial, macroeconômico.
O fundamentalismo do Deus-Mercado, enquanto produtor de sentidos, deve ser perscrutado pelo pensamento filosófico, dado que se tornou um Fetiche, um Absoluto dotado de características de divindade onisciente, onipresente e onipotente, com ritos inerentes, sacerdotes, dogmas e mensagem de salvação. Nesta mesma linha de pensamento encontramos autores como Frei Betto e Harvey Cox.
Cox é teólogo norte-americano e seu trabalho tem por objetos o desenvolvimento teológico do cristianismo no mundo, incluindo a Teologia da Libertação e o Cristianismo na América Latina. Em seu texto O Mercado como Deus: Vivendo na nova dispensação (1990), Cox expõe que foi aconselhado por um amigo a ler revistas de economia e de negócios para se atualizar sobre a realidade do mundo.
Ao se defrontar com as revistas de economia, percebe uma semelhança entre o vocabulário econômico apresentado em Gênesis, em Epístola aos Romanos e em A Cidade de Deus, de Agostinho. Subjacente às descrições das reformas ocorridas no mercado, da política monetária, das convulsões da Dow, o autor concatena as peças e descobre uma narrativa que se dá sobre sentido intrínseco da história humana, encontrando então os motivos pelos quais as coisas dão errado e o modo de corrigi-las.
Os teólogos denominam esta atitude de narrativa acerca do sentido da história da humanidade, do íntimo da humanidade, já que as narrativas sobre os motivos das coisas darem errado são tidas como mitos de origem, como as narrativas da queda e as doutrinas do pecado e da Redenção. Todavia, para o autor, essas narrativas estavam disfarçadas, referindo-se então, à criação do valor, às sedutoras tentações do estatismo, à submissão aos insondáveis ciclos econômicos de características secretas, à salvação através da ascensão dos livres mercados.
Para os economistas, os distúrbios ocorridos nas economias asiáticas são resultados do desvio desta ortodoxia do livre mercado. Mesmo com as crises – que podemos notar na Ásia, no calote russo ou no turbilhão econômico brasileiro – a fé continua fortificando o Deus-Mercado. Não obstante, o Mercado torna-se uma divindade pós-moderna, na qual se crê mesmo com todas as evidências mostrando o oposto. Como não há mais a prova da existência de Deus, algo deve tomar esse lugar vazio, conferindo sentido à vida do homem, dominando-a de modo invisível, conferindo também Salvação através da ascensão de livre mercado, criando valores.
O livre mercado pode ser entendido como uma fé única, verdadeira e que deve ser seguida por todos. Nas reviravoltas ocorridas no Mercado, este Deus-Mercado surge renovado das provações, o que é possível através do contagio financeiro. Isto é a feira do Mercado. Cox faz um paralelo entre fé e afirmação de São Paulo de que a fé verdadeira é evidência das coisas que não são vistas.
O autor fala, pois, de uma Teologia dos Negócios, a qual possui sacramentos, calendário de “santos”, além de uma escatologia.
Devido à sua curiosidade com as doutrinas relativas ao mercado, o autor passou a cataloga-las e notou nelas uma completa teologia a qual, em âmbito de estudos, alcança uma teologia como a de Tomás de Aquino ou de Karl Bath. Todavia, há a necessidade de ser sistematizada para construir uma Summa nova.
O Deus-Mercado
Como base de todo e qualquer sistema teológico, temos como princípio Deus. Nesta nova teologia, este lugar é ocupado pelo Mercado, escrito com “M” para destacar o mistério que o abarca, e para expor a reverência que Ele ocasiona nos homens de negócios.
São várias as crenças e diversos os pontos de vista sobre os atributos de Deus. No Cristianismo, Deus é definido, em geral, como onipotente, onisciente, onipresente. Mas as teologias não estão livres de ambiguidades, dado que apontam a inacessibilidade dos atributos divinos aos olhos humanos – estando ocultas ao homem devido ao pecado original e devido à própria transcendência do Divino. Estabelecendo o paralelo entre Mercado e Deus, o primeiro possui atributos divinos como onipotência, onisciência, onipresença os quais não estão completamente evidentes aos homens, embora devam ser acreditados e confirmados através da fé.
Cox, ao acompanhar as explicações e argumentos dos economistas-teólogos – as quais justificavam os caminhos do Mercado aos homens -, percebeu a mesma retórica presente em suas ponderações acerca dos tomistas, dos calvinistas e das diversas escolas de pensamento religioso da Modernidade. Esta retórica encontrada nas explicações dos economistas-teólogos, isto é, a retórica econóloga, é comparada à “teologia processual”.
Influenciada pela filosofia de Alfred Whitehead, a teologia processual propõe que Deus deseja possuir os atributos clássicos, mas ainda não os possui em sua totalidade, embora caminhe nesta direção de modo indiscutível. Esta teologia responde ao problema colocado pela teodicéia e parece confortar os teólogos do mercado ao auxiliar na compreensão da perturbação, do sofrimento e da desorientação obtidas nas mudanças de heterodoxia econômica aos mercados livres.
Nos primórdios da humanidade, existiam mercados, entretanto, estes mercados não eram considerados deuses, pois haviam outros valores centrais significativos, outros deuses. Assim, o mercado era limitado por outras instituições. Polanyi afirma que foi somente nos últimos dois séculos que o Mercado foi colocado acima desse semideuses, dos espírito sobrenaturais, tornando-se a Causa Primária dos dias dos homens.
Os primeiros momentos da ascensão Mercado são comparados à ascensão de Zeus: a ascensão acima de outras divindades do antigo Panteão grego não foi muito segura, Zeus teve de se manter forte, estrondeando, a fim de abafar as ameaças à sua soberania. Contudo, o Mercado atualmente pode ser comparado ao Jeová do Velho Testamento, já que é considerado como deidade suprema, único Deus verdadeiro, que tem um reino que deve ser aceito universalmente e sem oposições.
A onipotência de Deus expõe Sua capacidade de definir o que é real e de sua capacidade de poder de fazer do nada algo ou nada de alguma coisa. A onipotência do Mercado é desejada, mas ainda não foi alcançada, significando a falta de limites concebíveis à habilidade do Mercado de converter a Criação em mercadorias. Cox utiliza-se de outra analogia entre teologia católica e teologia do Mercado: afirma a noção de transubstanciação do pão e do vinho como veículos do sagrado.
Todavia, no Mercado se dá o processo reverso: as coisas compreendidas até então como sagradas, transmutam-se em artigos intercambiáveis, vendáveis. A terra pode ser um bom exemplo desta mudança na visão da Criação: sua dessacralização altera seu relacionamento com o homem, o que se dá também com a água, com mar, com espaço, e futuramente com os corpos celestes, pois o corpo do homem já sofreu tal dessacralização, podendo ter suas partes comercializadas.
A Liturgia do Mercado foi limitada pelas velhas religiões as quais podem mostrar-se insuficientes na convenção desta nova devoção do Deus-Mercado.
Ao analisar o caso alemão da venda da vila de Liebenberg, Cox conclui que a vontade do Deus-Mercado há de realizar-se cada vez com menos limitações. Atualmente, nota o autor, toda a criação é convertida em mercadoria. O problema levantado com a reflexão acerca do caso de Liebenberg foi: qual valor da vida humana na Teologia do Mercado?
Conforme a lei do Mercado, tudo está à venda e, consequentemente, nada é sagrado. O Mercado ainda não alcançou totalmente o atributo da onipotência, assim como o Deus da religião progressiva, mas encaminha-se para tal.
Chegada ao fim a análise sobre a onipotência do Mercado, Cox analisa o atributo da onisciência com relação ao mesmo. Para ele, possivelmente, o Mercado já tem atingida a onisciência, porém está impossibilitado de aplicar seu conhecimento até que seu reino e seu poder surjam em toda sua glória. O pensamento da atualidade atribui ao Mercado uma sabedoria que só se fez conhecida pelos deuses antigos. Portanto, o Mercado é concebido com a capacidade de determinação das necessidades humanas, do custo das coisas e serviços.
Aqui reside o problema da possibilidade de determinação da vontade do Mercado. No passado, videntes, profetas eram mediadores para falar aos suplicantes acerca do humor dos deuses. Atualmente, a vontade do Mercado, que é instável, é esclarecida através de relatórios diários vindos de Wall Street e de outros órgãos financeiros “sensitivos”. Estas revelações acerca do estado do Mercado, de sua vontade, servem de base para adeptos a respeito de decisões sobre comprar ou vender algo.
O Mercado é corporificado na imagem de um touro ou de um urso. Como um deus voraz antigo, deve ser mantido contente, deve ser alimentado em qualquer circunstância. Os videntes, os profetas e adivinhos do estado de espírito do Mercado são vistos como os sumo-sacerdotes do mistério da deidade. Agir contra os avisos deles é correr risco de excomunhão e, provavelmente, de condenação eterna.
Como exemplo, temos que qualquer política governamental que perturbe o estado do Mercado pagará pela irreverência. O Mercado não se importa com a crescente concentração de renda norte-americana, ou com o entusiasmo devido ao aumento das vendas de cigarros. O Mercado é, então, considerado como uma deidade insondável, a qual pode operar de modo misterioso, invisível aos olhos humanos, mas seu conhecimento, em comparação ao conhecimento humano, é dito melhor.
A onisciência do mercado é concebida, por hora, como intrometida. O Mercado conhece os segredos mais profundos e também os desejos mais obscuros dos corações dos homens:
Certamente, o mercado ambiciona essa onisciência tomográfica porque, ao sondar nossos mais íntimos medos e anseios e, com isto oferecer respostas abrangentes indiscriminadas, ele pode ampliar ainda mais seu alcance. Tal como os deuses do passado que possuíam sacerdotes para recolher suas ofertas fervorosas, preces e pedidos do povo, o Mercado conta com seus próprios intermediários: os pesquisadores motivacionais (COX, 1999, p. 7).
Estes pesquisadores são treinados na arte da psicologia – a qual tomou o lugar da teologia como a ciência da alma. O autor realiza o paralelo entre a avançada arte da psicologia e os confessores medievais. Não notamos céticos ou livres pensadores refutando a onisciência do Mercado. A dominação desta atual ortodoxia ocorre com tanta força que, ao questionar a onisciência do Mercado, duvida-se da misteriosa sabedoria da Providência.
O Deus-Mercado também anseia por onipresença, ideia esta cuja expressão se encontra em todas as religiões. Como exemplo desta evolução da onipresença do Deus-Mercado, podemos marcar a última tendência da teoria econômica: a tentativa de que os cálculos mercadológicos abarquem áreas anteriormente isentas, como as relações matrimoniais, criação dos filhos, vida familiar, etc.
Para Lepage (segundo a visão de Cox), defensor da globalização, há hoje o Mercado total. O Mercado encontra-se, pois, ao nosso redor, dentro de nós, de modo que doutrina nossos sentimentos e sentidos, não há meios de fugir de sua ação. Fica evidente para o teólogo que:
a descoberta da Teologia do Mercado me fez ver de maneira diversa o conflito entre religiões. Frequentemente, a violência entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte ou entre hindus e muçulmanos na Índia domina as manchetes dos jornais. Mas comecei a conjeturar que um verdadeiro choque das de religiões (ou mesmo de civilizações) pode ter passado despercebido. Começo a pensar que para todas as religiões do mundo, em que pese suas diferenças, a religião do Mercado torna-se seu mais formidável rival, tanto mais quanto é raramente reconhecida como uma religião (COX, 1990, p. 8).
Para cristianismo e para o judaísmo, a natureza é identificada ao Criador. Todavia, para a religião do Mercado, os seres humanos – em particular aqueles detentores de dinheiro – são donos de tudo o que compraram, podendo utilizar, gastar as coisas como lhes aprouverem. Aqui existe oposição com relação à visão cristã e judaica do Senhor como dono da Terra; notamos as mesmas relações de oposição em outras ideias, como sobre corpo humano e sobre a natureza da comunidade humana com relação à vida. As antigas religiões ligam-se a determinados lugares, por vezes considerados sagrados, mas na religião do Mercado, todos os lugares são comercializáveis.
Desta maneira, o Mercado opta por uma cultura mundial homogeneizada, entendendo as particularidades como inconvenientes.
O autor expõe as diferenças fundamentais entre as religiões tradicionais a religião do Mercado, problematiza se tais diferenças acarretarão uma nova Jihad ou cruzada. O próprio Cox duvida desta possibilidade, porque as religiões nacionais não tem força suficiente para colocar em cheque as doutrinas da nova dispensação. Ademais, o debate entre as religiões não pode ser submetido à provas empíricas.
O Mercado está relacionado, impreterivelmente, ao individualismo e à mobilidade, por serem facilitadores com relação à necessidade de deslocamento de pessoas, conforme a produção exija. Esses valores tradicionais devem ser destruídos, ou não, já que a nova religião tem modos engenhosos de incorporar as regiões anteriores. Como mandamento da religião do Mercado, tem-se ” nunca é o bastante “, já que nunca finda sua expansão. Entretanto, a queda desta expansão só se dá com a morte do Mercado, cuja possibilidade é especulada por nosso autor.
Retornando ao pensador Mo Sung, este cita Horkheimer para dizer da divinização do homem, para dizer que qualquer ser limitado (assim como o homem), ao se considerar como último, como mais elevado e único, transforma-se, desejando sacrifícios sanguinários. O reconhecimento consciente do desamparo humano, da sua finitude leva à produção de esperança da existência do absoluto positivo, o que relativiza o mundo em que o homem vive. Ao divinizar-se a si mesmo ou as suas organizações sociais, o homem pode se tornar perigoso para o mundo.
Destarte, o Mercado é como Deus invisível agindo sem que o humano perceba, cuja ação restringe-se ao bem de uma minoria.
O Deus-Mercado e suas vítimas
Tanto nos centros das Megalópoles, quanto nos mais distantes lugares do planeta, a onipotência e a onipresença do Mercado se dão de modo sagrado. O que Frei Betto, Horkheimer e Mo Sung expõem como pontos mais nocivos nesta divinização do Mercado é o sacrifício de seres humanos e de outras manifestações de vida. Hinkelammert aponta que a irracionalidade da razão sistêmica é um dos fatores nocivos e intrínsecos ao sistema capitalista, o qual origina o apartheid social.
O filósofo da Libertação justifica seu pensamento: a irracionalidade da razão sistêmica é uma irracionalidade, pois o mercado promove o crescimento econômico, a produção de riquezas e, proporcionalmente, provoca a exclusão social – como é evidente com relação à situação brasileira, que será brevemente analisada a seguir.
Desta irracionalidade do Mercado é que se gera um quadro crônico de injustiças, mostrando este novo Deus com poder onipotente de acentuar os abismos: do lado desfavorecido, temos os sujeitos sem condições de produzir suas vidas de modo a satisfazerem suas necessidades básicas; já do outro lado do abismo, encontramos alguns poucos homens ricos, os quais fazem do dinheiro um Fetiche cujos altares estão na especulação financeira da bolsa de valores e em paraísos fiscais.
Explica-se, assim, que nas relações econômicas, faz-se necessário algo acima da racionalidade instrumental. O controle dos efeitos das ações, quando conduzidas pela racionalidade de cálculos de meio-fim, é quase impossível. Esses efeitos podem gerar crises, como exclusão de setores da população ou devastação ambiental. Logo, o fenômeno da irracionalidade do racionalizado fica claro, sendo a ação considerada “racionalizada” somente por causa dos cálculos meio-fim. Porém, este sistema de cálculo mostra-se irracional quando referente aos sujeitos.
Há a necessidade da escolha de fins que se subordinem à vida do sujeito: só é considerado factível aquele subconjunto de fins ligados a algum projeto de vida, ou seja, fins compatíveis com a manutenção da vida do próprio sujeito.
Esta usurpação da racionalidade pela irracionalidade acarreta uma ética de irresponsabilidade, baseada somente na eficiência. Nota-se que o irracional é justificando e concebido como racional. Na maior parte dos países, há o descuido com relação aos pobres na adoção de políticas neoliberais, de planos especiais de organização econômica. Isso acaba por acarretar várias formas de violência e de ilegalidades.
Esta irracionalidade da racionalidade sistêmica neoliberal do Mercado pode ser percebida na ideologia que preconiza o individualismo, a diminuição da importância do social, dos valores atrelados ao mesmo. Inserido dentro deste contexto ideológico, somente o Mercado tem valor social. O homem é induzido por esta ideologia a um sentido de pertença comum fortemente dominador. As maiorias são, pois, induzidas a aceitarem os custos e também os sacrifícios altos para salvarem o sistema do Mercado.
Esta ideologia é útil àqueles que administram instituições e processos sistêmicos. O maior sacrifício é dos pobres e nesta necessidade do mercado por sacrifícios humanos, encontra-se a essência da irracionalidade – que vai contra a opção pelos pobres, opção que está de acordo o Deus cristão. Não obstante, o sistema capitalista de Mercado, enquanto Deus, é um sistema que destrói as ações humanas, produzindo pobreza, ou seja, na mesma proporção que produz riqueza, produz pobreza.
A morte indiscriminada do Outro humano, os inúmeros sacrifícios em pró do Mercado revelam a necessidade de responsabilidade, pois deixar morrer é matar quando se pensa em questão de países marginalizados. Nosso sistema funciona assim, mas para ser humano, faz-se imperativo que se construam estruturas compatíveis com a vida humana. Este tipo de filosofia, um modo de Filosofia da Libertação, opõe-se ao fundamentalismo cristão dos americanos. Conforme este tipo de fundamentalismo, o Outro é concebido como inimigo crucificador de Cristo.
Hinkelammert atesta o fato de que este modo de uso politico da religião cristã foi um grande empecilho à existência de centros de formação de sujeitos capazes de transformar a irracionalidade sistêmica, possibilitando a vida dos pobres. Este tipo de reflexão é tomado como sem valor, sem importância; entretanto, é um modo de formar o homem para a reflexão.
A dita irracionalidade da racionalidade sistêmica corroborou para que todos fossem absorvidos pela mesmice da globalização, produzindo uma situação de vazio de sentido. As leis passam a ser destituídas de sentido para o povo, haja vista que: a corrupção passa a ser legal; os maiores crimes da atualidade não ferem lei alguma; a destruição da natureza não viola a lei; a exclusão da metade da população e seu destino miserável não viola a lei. Deve-se ter em mente que a lei passa a ser entendida como meio de destruição de massas, do mesmo jeito que o são a bolsa de valores e bancos.
É desta maneira que as instituições passam a ser vistas como vazias, não fornecendo sentido à vida do homem. Este vazio, portanto, é uma situação de vazio ético, ou melhor, é niilismo de todos os homens, não há mais sentidos nas instituições humanas. A ideia de progresso espiritual infinito do humano proposto pelo Iluminismo também se esvaziou desde as guerras mundiais.
O iluminismo deixa ao homem a herança da redução da racionalidade ao cálculo de meio-fim, o que significa, na verdade, reduzir as coisas ao cálculo de interesse particular ou ao cálculo de interesses e objetivos específicos.
Neste mundo atroz do Deus-Mercado, a referência à convivência, à vida em comum, à convivialidade é totalmente excluída, algo sem precedentes para um fundamentalismo religioso. Hinkelammert aponta que as religiões e ideologias seculares têm como fundamento a morte do Outro – o que atrela-se à ideologia de competição vigente atualmente na América Latina.
Por isso, vivemos alheios ao Outro, tomado-o como nosso inimigo, limitador de nossa liberdade. Para viver, é necessário que ele seja impedido de viver. Esta é uma racionalidade ocidental fatal, acarretando o suicídio coletivo, grande destruição e a morte do planeta.
Apesar deste fundamentalismo do Mercado, o teólogo-economista propõe que se pense com uma dose de rebeldia o viver qualitativo para todos. Para tal, a autocrítica na religião faz-se fundamental, sendo entendida como fenômeno oxigenador, gerador de possibilidades de responder os desafios acerca das permanentes inautenticidades religiosas.
Fica, portanto, claro que o perfil do filosofar biocrático proposto por Hinkelammert (entre outros pensadores), origina-se e fortalece-se na práxis. Um filosofar mais autêntico se encontra associado às filosofias, teologias e políticas da Libertação por preconizarem um modo de viver em outro mundo possível. É deste outro mundo possível que se origina a salvação do povo, a esperança na reprodução das vidas conforme o lugar que é o Ser do Outro, lesado e vitimado.
As religiões cujas perspectivas convergem com os princípios de versões de ideologias progressistas e libertadoras são capazes de se juntar na luta contra hegemonia da globalização neoliberal.
Devido à secularização pós-iluminista de desconstrução e privatização das religiões, deve-se voltar o olhar para a comunidade, para sujeito da comunidade, pois é nela que religião passa a se encontrar. A religião é, assim, afastada do Estado, do Mercado, encontrando seu lugar na comunidade, a qual é um domínio de regulação social menos rígido e padronizado, mais aberto à diversidade.
Quando se nota a diversidade das teologias e filosofias progressistas da Libertação, percebe-se a possibilidade de diálogo, de interculturalidade no domínio religioso, o respeito à dignidade humana. Nestes diálogos de interculturalidade e em seus respectivos espaços, há um apelo ético ao filosofar com possibilidades de ultrapassar as contradições das religiões tradicionais. Isto consequentemente, faz com que as filosofias e as teologias sejam concebidas como construtoras de sentido no âmbito do sagrado no humano.
Ernest Bloch propõe o princípio-esperança como vital ao Ser, sendo entendido como processo dialético de tensão já-e-ainda não, ou melhor, a tensão entre o viver do sujeito aqui e agora e o ideal do sujeito-no-mundo já iniciado, apesar de incompleto. Com a situação de vazio dos sentidos para viver, da onipresença invisível do Deus Mercado, do medo de participar, é criado um contexto de caos e de impotência, o que fere o princípio em questão. Tal princípio surge do Dasein em períodos caóticos, e quando ferido, pode levar ao adoecimento ontológico. O humano é, pois, abordado a partir do Ser e, concomitantemente, a partir de sua irredutibilidade às coisas do mundo. Eis aí uma ética da esperança em meio aos fundamentalismos.
Em suma, Hinkelammert propõe uma ética real e concreta fundada na satisfação das necessidades humanas vitais: isto significa limitar e avaliar as instituições e ações segundo estejam ou não em função da vida do sujeito. Estas instituições e ações devem possibilitar a reprodução da vida humana corporal concreta, tendo em vista que possibilidade da vida encontra-se na satisfação das necessidades do sujeito.
Então, o autor coloca como sentido para a nova sociedade a intervenção sistemática no Mercado: não se deve concebê-lo como regulador de si mesmo, porque acarreta a destruição de si mesmo e do planeta. É somente sobre esta condição que Mercado e vida humana passam a ter compatibilidade. Doravante, a defesa do Outro com relação ao Mercado faz-se imprescindível, pois este novo Deus, enquanto Fenômeno, exclui a maior parte da população e destrói a natureza.
Após o Iluminismo, o homem ficou à mercê do processo automático, destituído de uma finalidade e com poder enorme para matar. Este processo mecânico é autossuficiente e está ligado à lógica dos meios sem finalidades, desligando o humano de projetos comuns. Mas o Dasein deve ser rebelde, não permitindo ao homem incorrer no niilismo oriundo da secularização irresponsável. Esta irresponsabilidade perante o ser humano se mostra na necessidade de crer e no desejo de saber, conforme Kristeva:
Agarrando-se ao obscurantismo, a secularização esqueceu de se interrogar sobre a necessidade de crer que está subentendido ao desejo de saber, assim como sobre os limites a serem postos ao desejo de morte – para viver juntos. No entanto, não é o humanismo, são os desvios sectários, tecnicistas e negacionistas da secularização que se precipitam na “banalidade do mal” e que hoje favorecem a automatização em curso da espécie humana (KRISTEVA, 2011, p. 1).
A autora aposta então na arte de questionar continuada, entendida como exercício da responsabilidade ética do homem na sociedade, na história. Defensora de um novo Humanismo, Kristeva afirma que este promove o encontro de diversas culturas, o qual é favorecido pela globalização e pela informatização. Esta nova concepção de Humanismo visa traduzir, respeitar, avaliar as diversas necessidades do crer e dos desejos de saber. A força vital do amor é entendida como um modo de conectar os indivíduos de diversas culturas e religiões, promovendo abertura, diálogo.
Luc Ferry aponta para a importância do espírito crítico neste novo Humanismo, sendo que a critica deve recair sobre si mesmo, isto é, sobre o próprio homem. Este momento de autorreflexão começa a surgir após a Segunda Guerra Mundial, quando os homens são atormentados pelos malefícios potenciais da ciência que é responsável, em partes, por guerras terríveis e crimes de guerra. Ferry indica um momento de sacralização do humano, no qual a ideia de valor do sagrado liga-se à ideia de sacrifício como uma dimensão quase religiosa, ao tratar da relação com Outro.
Com esta ética da sacralização do humano, todo humano passa a merecer ser respeitado, independente de suas inserções culturais, linguísticas, religiosas, comunitárias ou étnicas. O sagrado, portanto, sempre existe no rosto do Outro, despertando-nos compaixão. A questão da salvação é então repensada a partir de três elementos: o primeiro elemento é a exigência do pensamento alargado. Através deste alargamento, o homem distancia-se de si mesmo e pode ir ao encontro do Outro; o segundo elemento é referente à sabedoria do amor, concebida na singularidade e vinculada ao ideal do pensamento alargado; o terceiro elemento é o motor do ser amado. Ferry afirma:
afastando-me de mim mesmo para compreender Outro, alargando o campo de minhas experiências, eu me singularizo, já que ultrapasso ao mesmo tempo o particular de minha condição de origem para acender, se não a universalidade, pelo menos ao reconhecimento cada vez maior e mais rico das possibilidades que são da humanidade inteira (FERRY apud GONÇALVES, 2014, p. 119).
Logo, Ferry valoriza o pensamento alargado no amor, pois só assim o pluralismo de fachada é ultrapassado, só através dele é que o homem pode renunciar às suas próprias convicções resgatando, então, uma visão de mundo diferente no Outro, de modo que passa a compreender esta outra visão e este Outro, podendo até mesmo assumi-la parcialmente.
O Deus-Mercado no Brasil
Como exemplo mais concreto das vítimas feitas pela dominação atroz do Deus-Mercado, temos o próprio Brasil. Mesmo com um crescente aquecimento da economia na última década, a desigualdade e os problemas sociais não diminuíram no mesmo ritmo. Conforme o Ipea, mesmo com o avanço da economia, nosso país se mantém entre os doze países mais desiguais. Em 2011, o Brasil alcançou seu menor nível de desigualdade social desde 1960. Esta diminuição foi medida pelo coeficiente de Gini, passando de 0,594 em 2011 para 0,527 em 2011. Devemos ter em mente que, quanto mais próximo do zero o número indicado pelo índice, menor é a desigualdade.
Fica mais que evidente que, apesar do crescimento econômico, as desigualdades se mantêm, o Mercado continua subjugando suas vítimas, tornando-as cada vez mais pobres, miseráveis, sem acesso à educação, à saúde, sem voz ativa na sociedade. Aos homens de negócio fica o aumento dos lucros, aos miseráveis, fica o aumento de seu desespero e do descaso.
Não há ganhos reais quando somente um pequeno grupo da sociedade prospera, deixando aos pobres a opção de se sacrificarem arduamente pelo Mercado, vendendo a valores baixos sua força de trabalho sem que, ao menos, suas necessidades básicas possam ser supridas. Estes dados causam tamanho espanto que trazem à luz problemas autoevidentes, os quais não queremos enxergar:
Até quando vamos divinizar o dinheiro e deixar o Outro para morte? Como é possível que a economia cresça e proporcionalmente cresça também a miséria? Por que não há distribuição de renda justa? Por que é sempre o pobre o sacrificado, o diminuído? Esses problemas expõem a insuficiência do fundamentalismo do Mercado, além da necessidade de “transavaliar” – como sugere Kristeva – todas nossas crenças, conhecimentos, valores e divindades e pró da salvação do outro – que também somos nós mesmos – e do mundo.
Conclusão
O homem com seu projeto ilimitado de dominação, seja ela religiosa, política, ideológica, econômica, da natureza, ou do Outro, ateia fogo à casa em que habita: destrói recursos naturais em troca de um avanço econômico desenfreado, destrói o Outro, pois é intolerante ao diferente e ao que lhe impõe limites. Este projeto é o principal fator que leva às grandes guerras, sejam elas econômicas, religiosas, políticas, religiosas ou ideológicas. E daí originam-se os fundamentalismos.
Desta falta de projetar-se para fora de si e de colocar-se no lugar do Outro, que tomamos o Outro como inimigo, como incompreensível, como limite à nossa liberdade e vontade. Assim, o Outro é um empecilho ao meu viver. É gritante a necessidade de reflexão acerca dos efeitos das próprias ações. O retorno a si mesmo e a compaixão são imprescindíveis para a sobrevivência do Ser do homem. O Outro mais pobre, mais miserável é o que mais sofre as ações da dominação ilimitada do homem e de suas instituições. Esquecemo-nos de ver no Outro a realização de nossa própria existência, a realização conforme a vontade divina: todos nós dependemos do Outro e por ele devemo lutar.
Somente através de uma análise honesta, destituída de preconceitos e interesses particulares, é que poderemos compreender a abrangência da devastação acarretada pelo projeto do homem. Somos movidos por uma ideia de progresso vazia, destituída de sentido para a vida. É através desta ideia que buscamos em progresso econômico sem nos preocupar com as vítimas do mesmo: a natureza e o pobre excluído. Logo, devemos voltar nosso olhar ao Outro – seja lá quem ou o que for este Outro – como alguém que nos liga a Deus através uma relação de amor incondicional. Sobre a vigência de um novo olhar, o mundo todo poderia se transformar, e nesta transformação, as ações humanas deveriam pautar-se em uma ética de responsabilidade com o Outro, em uma ética ligada à justiça.
O Outro deve ter sua dignidade respeitada a qualquer preço, o que significa que ninguém ou nada pode feri-la, passar por cima dela; nem a religião, nem a ideologia, nem o crescimento econômico, nem a política. Este deve ser o novo preceito limítrofe do agir humano. Devemos tomar por mandamentos a defesa do Outro, o respeito à natureza e a limitação da dominação decorrente do crescimento da força do mercado: o mercado deve assumir somente o estatuto de fornecer meios do homem suprir suas necessidades básicas, sem passar em cima de sua própria vida, sacrificando-se para tornar-se cada vez mais pobre, miserável e apartado de si mesmo.
O Mercado deve suprir o homem, mas o homem não deve se sacrificar para suprir às exigências do Mercado. O amor incondicional, a reflexão sobre os devidos limites das atitudes humanas e a abertura ao diálogo com o outro, respeitando-o e vendo nele minha possibilidade de realização enquanto participante do gênero humano, mostram-se como novo-velho caminho que pode conferir sentido à nossa existência no mundo, enquanto humanidade. Poderíamos, assim, romper com este ciclo miserável e sempre-existente que moveu o homem na história da humanidade até então. O Outro passa a ser sagrado, ponte com o divino.
Referências:
COX, Harvey. O Mercado como Deus – Vivendo em novo Sistema Religioso. EEUU: PDF, 1999.
GONÇALVES, Jaci Rocha; LUNKOVSKI, Roberto. Deus e religião: do renascimento ao contemporâneo: livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2014.
KRISTEVA, Julia. Um novo Humanismo em 10 princípios. Assis: Corriere della Sera, Itália, 2011.
Michele Vaz, espero que sejas brilhante em tudo, ou como demonstrou ser através do seu artigo acima O Deus-Mercado. Parabéns e não pare de ler e escrever, por favor.
Felipe, que texto maravilhoso! Como a Michele escreve bem, já estou repassando para os amigos que adoram uma boa leitura. Que bom acompanhar este site/blog. Como disse o Sergio Furtado, Michele não pare de escrever. Abs,
Ola Michelle, este assunto é muito interessante e atual. Tenho um livro escrito sobre o tema em 2004, resultado de minha dissertação de mestrado cujo nome é “O comercio do Sagrado”, publicado pela Descoberta Editora de Londrina. Sendo pesquisadora neste tema, talvez ele possa contribuir.
Abraços
Dionisio Oliveira
Pela sua conclusão, você não leva em conta que o mercado odeia guerras. Todas as guerras e crises foram causadas por intervenção estatal, centralizar o poder na mão de poucos é o grande problema. O poder deve ser totalmente descentralizado entre os indivíduos, sem a existência de um estado central que cobre impostos para financiarmos suas crises e guerras. Igualdade somente perante a lei. Só existe uma lei: Principio da não agressão.