Conheça a crítica de Hume à metafísica e os conceitos que a fundamentam, a partir do Tratado da Natureza Humana e Investigação sobre o Entendimento Humano
David Hume nasceu em 7 de maio de 1711 na cidade escocesa de Edimburgo. Foi filósofo, ensaísta e também historiador que ficou conhecido pelo radicalismo de seu empirismo e pelo ceticismo presente em seu pensamento. A importância de seu pensamento se dá devido à sua tentativa de aplicar às ciências morais a metodologia exposta por Newton no âmbito astronômico e físico. Hume, com sua tese de que todo o conhecimento do homem origina-se e deriva dos sentidos, coloca em cheque o racionalismo cartesiano – o qual toma o conhecimento como ligado intimamente à razão – bem como a tradição metafísica ocidental como um todo.
Neste texto, temos por finalidade expor a crítica humeana à metafísica e também alguns conceitos importantes os quais fundamentam a mesma. Tais objetos encontram-se em suas duas obras Tratado da Natureza Humana (1740) e Investigação sobre o Entendimento Humano (1748). Todavia, analisaremos nossos objetos de acordo com as exposições feitas nesta segunda obra (Seção II), que se divide em doze seções e é uma reconstrução da Primeira Parte do Tratado.
Hume critica todo o discurso metafísico acerca dos fenômenos que se dão no mundo e, mais que isso, propõe que há uma inadequação entre a linguagem e objeto ao qual esta se refere. Na verdade, reside aqui uma acusação contra a linguagem metafísica, acusação que expõe o fracasso desta. Como se pode notar, a filosofia empirista humeana visa dissolver o paradigma filosófico platônico-cartesiano e cristã da cisão entre sensível e suprassensível. Há, pois, a desconfiança da linguagem e da razão, de modo que e o ceticismo presente em sua filosofia faz-se evidente.
A palavra verdadeira encontra-se, pois, no mundo, contrariamente ao que foi concebido pela metafísica: “Se o que ajuizamos no conhecimento não esgota o que é o mundo, infelizmente não há uma alternativa epistemológica possível para esse fracasso constatado” (BARBOZA, 2011, p. 15). Assim, não há a palavra revelada. O ceticismo humeano mostra-se quando o filósofo não dá continuidade à oposição entre sensível e Inteligível e toma-a como destituída de sentido.
A tradição idealista é criticada duramente, a ponto de Hume ganhar a inimizade de lógicos, metafísicos, matemáticos e teólogos. Não há, pois, nenhum conhecimento que possa discursar acerca de realidades que extrapolam a experiência. O filósofo escocês “desaprova os seus sistemas que se enredam em disputas meramente linguísticas, em contradições, em mal-entendidos de termos complexos que não passam de combinação de termos simples” (BARBOZA, 2011, p. 16). Ademais, filosofia humeana não aceita entidades extramundanas, pois toda a realidade do mundo encontra-se nas impressões e em suas cópias.
Para solucionar esse problema, o filósofo apresenta sua primeira proposição acerca do conhecimento humano: todas as ideias do homem derivam de impressões – uma classe das percepções. As impressões originam-se, por sua vez, das sensações – experiência interna – ou dos sentimentos – experiência externa. Das impressões surgem as ideias e os pensamentos, ou seja, as ideias e os pensamentos são cópias pálidas das impressões, os quais são mantidos na imaginação – a qual pode juntar aparências e também formas incompatíveis – ou na memória. Os conteúdos da mente são impressões e ideias, sendo as primeiras mais vívidas do que as segundas.
A fim de compreender melhor o que Hume concebe por percepção, devemos ter em mente que sua divisão em: 1) impressões – as quais são percepções vívidas, são sensações externas e internas; e em 2) ideias ou pensamentos – os quais são percepções menos vívidas por serem cópias das impressões. Não obstante, as sensações externas são as advindas dos cinco sentidos e podem ser acompanhadas de sentimento; já as sensações internas referem-se aos sentimentos.
Os pensamentos, por sua vez, são cópias das impressões e ao estarem acompanhados de sentimentos, podem conceber novas impressões. Qualquer ato de conhecer extrai do mundo sensível todos os seus elementos. Logo, esta é a origem do conhecimento humano, segundo o filósofo escocês, e é através desta perspectiva que a oposição, herdada de Platão e também encontrada em Descartes, entre mundo sensível e Inteligível é revogada.
Quando se reflete sobre sensações e impressões passadas, o pensamento do homem reflete fielmente e copia seus objetos com veracidade, todavia, essa cópia é menos vívida. Segundo Hume, não é necessária uma distinção advinda da metafísica para apontar a diferença existente entre impressões e pensamento. Este último pode se transportar para várias regiões do Universo e também para além deste.
Através do pensamento, aponta Hume: “Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição” (HUME, 1999, p. 10). Portanto, a contradição é o caso no qual as ideias simples não derivam de impressões correspondentes.
Ao determinar que o conhecimento vem das impressões, os limites deste e da linguagem são expostos: tudo o que pode ser expresso e conhecido acerca do mundo – sobre as questões de fato – limita-se ao que se fundamenta na experiência, limita-se ao que é fornecido pelo mundo aos nossos sentidos e sensações. Assim, qualquer discurso, seja físico ou metafísico, é concebido como uma combinação de pensamentos básicos embasados em impressões acerca do objeto, em determinados momentos. Desta combinação de termos que dizem de objetos perceptíveis, tem-se como resultado estruturas complexas de frase, fundamentadas em ideias simples as quais são oriundas do mundo sensível.
Não obstante, a realidade do mundo, de acordo com Hume, é composta pelas impressões e pelas cópias das impressões. Então, o filósofo expõe que os limites do pensamento e das faculdades do espírito são: combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais adquiridos pela experiência e pelos sentidos. Não obstante, “Todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Assim, todas as ideias do homem ou percepções menos vívidas são cópias de suas impressões ou percepções mais vivas” (HUME, 1999, p. 11).
Dois argumentos são apresentados pelo filósofo a fim de provar que as ideias são cópias de nossas impressões – percepções mais vivas. O primeiro argumento refere-se à análise do pensamentos ou das ideias do homem, e por mais compostos que se apresentem, sempre podem ser reduzidos à ideias simples, assim como as cópias de sensações prévias. Até as ideias como a de Deus, derivam das sensações que lhes são anteriores no processo de conhecimento.
O segundo argumento apresentado para provar que as ideias são percepções mais fracas, cópias de impressões, é de que as sensações são necessárias para a formação de ideias correspondentes, pois são aquelas que possibilitam essas ideias. Hume afirma ainda que “admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos quais não temos noção, porque as ideias destes sentidos nunca nos foram apresentadas pela única maneira por que uma ideia pode ter acesso ao espírito, isto é, mediante o sentimento e a sensação reais” (HUME, 1999, p. 11).
Sentir algo e depois trazer esse sentimento à memória ou à imaginação são coisas distintas, e é desse modo que se pode copiar ou imitar as percepções ligadas às sensações. Contudo, a vivacidade e força destas sensações não podem ser copiadas pela memória ou pela imaginação, nem por discurso ou pensamento algum, pois o mesmo grau de vivacidade só se dá quando o espírito é acometido por uma doença ou pela loucura, de modo que não se pode diferenciar as percepções de seus respectivos objetos. De acordo com o filósofo, todas as cores da poesia não podem dizer dos objetos naturais de modo que se possa descrevê-los através dessa pintura, somente a paisagem real pode fazê-lo.
A sensação é, pois, sempre superior ao pensamento. Com essa exposição, podemos notar que há um ponto de convergência entre o pensamento humeano e o pensamento de Bacon: “as palavras não são senão imagens das coisas, e se estas não estão vivificadas pela razão e pela invenção, enamorar-se delas é o mesmo que se enamorar de um quadro” (BACON, 2007, p. 48).
Como se pode notar, ambos concebem as palavras como imagens das coisa, como o que somente reflete palidamente o objeto por elas designado. O mesmo se aplica a um quadro: ele é uma cópia pálida de um objeto real apreendido pelos sentidos ou pelos sentimentos. Posteriormente, retomaremos essa comparação a fim de expor mais alguns pontos de convergência e de divergência entre ambos os filósofos.
Como todas as ideias vem dos sentidos externos, ou vem da representação de um pensamento da mente de algo sentido anteriormente por ela, o homem não pode pensar em algo que não tenha visto fora de si ou sentido em sua própria mente. As percepções mais fortes ou impressões são inatas.
O autor coloca que o pensamento parece não possuir limites, e devido a isso, inicia-se uma especulação e diz-se sobre o que não pode ser dito (como entidades metafísicas, anjos, espíritos etc). Todavia, o pensamento encontra-se detido à “limites bastante estreitos, e que todo esse poder criador da mente consiste meramente na capacidade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que os sentidos e a experiência nos fornecem” (HUME, 1999, p. 13).
Ao combinar ideias simples e fundamentadas nas sensações, obtém-se uma ideia composta que descreve, aparentemente, uma entidade autônoma, a qual é, contudo, somente uma combinação de palavras – vestimentas do pensamento – para a formação de um período complexo o qual não decorre da experiência. Como exemplos da presunção do pensamento e do reflexo da mesma na linguagem, o filósofo toma: “cavalo virtuoso” e “montanha de ouro”.
Pode-se compreender o que é dito, todavia o bom senso não assente o que é referido nessas frases. No caso da frase “cavalo virtuoso”, a experiência singular do cavalo – sua ideia simples – é combinada com a noção moral de virtude. O mesmo se aplica para à segunda frase. Destartem “se aplicarmos isso a todo o nosso pensar, à sua vestimenta que são as palavras e as frases, podemos então concluir como resultado: o pensamento complexo é composto de pensamentos simples, que por sua vez, fundam-se sobre sensações e sentimentos” (BARBOZA, 2011, p. 19).
Um dos exemplos utilizados por Hume dessa composição é clássico e foi passado pela tradição metafísica ocidental: a de um ser onipotente, onisciente, onipresente, perfeito e que criou o mundo e todas as criaturas à sua imagem e semelhança. Esse ser é designado pelo termo “Deus”. Para o filósofo, a ideia de Deus, enquanto um ser infinitamente inteligente, bondoso e sábio, vem da reflexão acerca das operações da própria mente humana e do aumento irrestrito das qualidades de sabedoria e bondade.
Assim, a linguagem leva o homem a crer em objetos os quais não podem ser percebidos, experienciados. É por isso que a cultura, considerada em suas verdades e saberes, encontra-se “num pântano de ilusões e de mal-entendidos” (BARBOZA, 2011, p. 19). Hume também amplia sua crítica à religião e aos saberes que pretendiam dizer o que o mundo é – com relação às questões de fato. Ao se desconfiar que determinado termo filosófico esteja sendo empregado mesmo que destituído de sentido, deve-se questionar de qual impressão a ideia deriva. Se não houver resposta, isto é, impressão correspondente, o discurso é considerado como abstruso e sem crédito, como é o caso do discurso metafísico.
O filósofo critica também os jargões presentes nos raciocínios metafísicos, já que foram eles que a desacreditaram. Para Hume, então fica provado que todas as ideias, em especial as ideias abstratas, são fracas e obscuras por natureza e o espírito não consegue controlá-las. São caracterizada como apropriadas para serem confundidas, misturadas com outras ideias semelhantes.
Em contrapartida à inexatidão da linguagem metafísica e também à palidez das ideias, as impressões, ou seja, as sensações, internas ou externas são vistas como vívidas, fortes e tem seus limites determinados de modo exato, de modo que não se pode confundi-las: “É razoável, portanto, esperar que, ao trazer as ideias uma luz tão clara, removeremos toda a discussão que pode surgir sobre sua natureza e realidade” (HUME, 1999, p. 18).
Isto significa que o problema da cisão entre sensível e Inteligível, bem como o problema epistêmico acarretado por esta cisão, são solucionados quando se delimita, define o que é a ideia e o pensamento diferenciando – os das impressões, tanto na questão de vivacidade e força, quanto com relação à origem do processo cognitivo. Assim, não há a necessidade de discutir a realidade e natureza das ideias, já que são cópias fracas das percepções.
O filósofo discorre sobre a evidência da existência de um princípio de conexão entre os diversos pensamentos ou ideias do espírito humano. Quando estes se apresentam à memória ou à imaginação, “se introduzem mutuamente com certo método e regularidade” (HUME, 1999, 2013). Até no caso dos devaneios, a imaginação não vaga sem uma conexão entre as diversas ideias que se sucedem. Mesmo que a conexão de diferentes ideias seja notória, não pode ser percebida pela observação.
Hume aponta que nenhum filósofo se ateve em enumerar ou classificar os princípios de associação de ideias. Os princípios de conexão são: semelhança, contiguidade no tempo e no espaço, causa e efeito. Como exemplo da ligação por princípio de semelhança, temos o quadro e os pensamentos que dele vão para o original apreendido e copiado.
A existência de tais princípios é postulado na mente humana pela presença de ideias simples encontradas em ideias mais complexas. Esse mecanismo universal encontra-se arraigado na natureza humana, como uma espécie de instinto a priori (com relação à ordem psicológica) e tem como finalidade preservar a vida. O ponto central da epistemologia humeana é apontar que o homem somente pode acessar aos fenômenos. As mentes humanas são formadas pela natureza, de modo que se aplicam a todos os homens os princípios dos quais se parte para organizar os dados da experiência.
Hume considerou sua perspectiva como uma revolução coopernicana no campo do conhecimento: os objeto passaram a ser tomados pela apreensão fenomênica – função dos sentidos. Contudo, deve-se ter claro que, formalmente, o conhecimento passou a gravitar em torno da estrutura do sujeito, e este sujeito possui um a priori que lhe confere a capacidade de ordenar os dados advindos da experiência.
Conforme foi exposto, Hume aceita apenas três princípios de conexão de ideias: o princípio de semelhança, o princípio de contiguidade no tempo e no espaço, e o princípio de causa e efeito. A relação entre estes e a linguagem é evidente: é através destes princípios que as ideias entram na mente e concebem diferentes discursos, que podem ou não serem convincentes, segundo a afinidade entre aquelas (ideias).
Este mecanismo de associação de ideias elucida o funcionamento do pensar humano e da linguagem, isto é, “sua vestimenta de aparecimento em sociedade na forma de diferentes saberes e dizeres, justamente as palavras que os comunicam” (BARBOZA, 2011, p. 22), já que as palavras são a vestimenta dessa associação de pensamentos, segundo os três princípios expostos. É importante ressaltar que neste ponto reside a crítica à metafísica ou a qualquer discurso acerca do suprassensível e sobre a apreensão de seus objetos pelo pensar e pela linguagem pura.
Os limites do entendimento humano são, pois, conhecer apenas o que é dado aos sentidos, e, assim, o sujeito cognoscente é tomado como finito. As ciências também embasam-se na associação de ideias ou de pensamentos, na crença da veracidade destas associações. Contudo, embasam-se em impressões, as quais originam os pensamentos e estes, ao serem combinados de acordo com os princípios mentais de associação, produzem as palavras e o relato de seu mundo.
Após elucidar os principais pontos da teoria do conhecimento de Hume, podemos retomar a comparação que iniciamos entre este e Bacon. De acordo com a filosofia humeana, as palavras são as expressões do pensamento, isto é, expressam percepções menos vívidas, as cópias das impressões. A vivificação das palavras e imagens cabem à memória e à imaginação, o que difere da exposição de Bacon, o qual atribui essa função à razão e também à invenção. Deter-se nas palavras é realmente o mesmo que se deter em um quadro, conforme a filosofia humeana, pois as palavras, assim como os quadros, somente remetem, de maneira menos vívida, ou melhor, copiam as impressões advindas do objeto percebido, do original, através do princípio de semelhança.
Ficam evidenciados, pois, os principais pontos da crítica humeana à tradição metafísica ocidental, a convergência desta crítica com a teoria de Bacon e também a divergência entre as exposições de ambos.
Referências bibliográficas:
BACON, F. O Progresso do Conhecimento. São Paulo: Editora da UNESP, 2007, edição Spedding
Barboza, J. Filosofia da Linguagem II. Florianópolis: FILOSOFIA/ EAD/UFSC, 2011.
HUME, D. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
Excelente texto. Até então não conhecia a abordagem de Hume. Achei interessantíssimos seus pontos de vista sobre o pensamento e a formação das ideias.
Obrigado, Michelle e Felipe!