Em 1729, aos dezoito anos, David Hume teve uma forte intuição que o levou ao new scene of a thought. Este “novo cenário do pensamento” fez com que o filósofo visse a “nova ciência da natureza humana”. O Tratado Sobre a Natureza Humana foi gerado desse novo cenário. Temos por objetivo extrair desta importante obra os motivos pelos quais Hume precisa conceber as ideias de virtude e de vício de acordo com as noções de dor e prazer. E conjuntamente, abordaremos a noção de bondade (do inglês goodness; derivada da palavra good – significa bem/bom sem as distinções como as existentes em português) em Hume. Entendemos aqui o termo “bondade” como identificado ao termo “bem moral” (útil).
Em o Tratado da natureza humana, a pretensão do autor é aplicar o método de raciocínio experimental à natureza humana, isto é, ao sujeito cognoscente. A inspiração veio de Bacon, pois foi através deste que Newton edificou uma sólida visão da natureza física – posto que Hume foi profundamente influenciado pela física newtoniana. Assim, o objetivo da nova ciência humiana era fundar a ciência do homem sobre bases experimentais, porque para ele essa ciência é mais importante que a física e que as outras ciências. Todos os conteúdos da mente humana são, segundo Hume, percepções. Estas se dividem em duas grandes classes: impressões (simples ou complexas) e ideias (simples ou complexas). As percepções são originárias, apresentam-se com maior força e violência (são as sensações, paixões, emoções). Assim, ter impressões tem o mesmo significado que sentir. Já as ideias são as imagens enfraquecidas que a memória produz a partir das impressões. Ter ideias significa pensar.
Essa divisão das percepções acarreta uma distinção entre sentir e pensar. Todavia, a distinção se dá de acordo com o grau de intensidade. As sensações são percepções mais vivas, enquanto pensar são percepções mais fracas. Toda percepção, pois, é dupla, já que é sentida (de modo vivo) como impressão e é pensada (de modo mais fraco) como ideia. O filósofo afirma que somente as percepções estão presentes à mente. Ações tais quais ouvir, ver, amar, julgar, odiar e pensar são consideradas por ele como percepções, pois “qualquer ação exercida pela mente pode ser compreendida sob o termo percepção” (HUME, 2009, p.496). Por conseguinte, os juízos utilizados para distinguir o bem moral do mal moral são também percepções. Condenar ou aprovar um caráter são duas diferentes percepções.
O primeiro princípio da natureza humana alcançado por Hume é o de que todas as ideias simples vem das impressões que lhe são correspondentes. Deste modo, não existem ideias inatas. Deve-se notar que todas as ideias simples provêm, de maneira mediata ou imediata, de suas correspondentes impressões. Só após definir o que são as impressões, podemos falar das paixões – as quais fundamentam a moral.
As paixões são consideradas como algo de originário e inerente à “natureza humana”. Independem da razão e não se deixam dominar por ela. As paixões são, pois, impressões que derivam de outras impressões. O filósofo diferencia as paixões em: diretas e indiretas. As paixões diretas são as que dependem, de modo imediato, do prazer e da dor. Como exemplos temos: o desejo e a aversão, a tristeza, a alegria, a esperança, o medo, a tranquilidade e o desespero. As paixões indiretas, por sua vez, tem como exemplo: o orgulho, a humildade, o amor, o ódio, a ambição, a inveja, a piedade, a malignidade, a generosidade e outras mais que são derivadas destas todas. Em suma, Hume afirma que as paixões referem-se ao eu. Isto significa que fazem referência à “aquela pessoa particular de cujas ações e sentimentos cada um de nós está intimamente convencido” (HUME apud REALE, 2005, p.141).
A vontade, conceito ligado diretamente às noções de razão e de paixões, é vista como a impressão interna da qual o homem torna-se consciente quando ocorre a origem de um novo movimento de seu corpo ou a uma nova percepção de sua mente, de modo intencional. A vontade é determinada por motivos internos, por isso a liberdade assume o significado de “não-coação externa”. A vontade, em última análise, pode ser redutível às paixões ou constitui algo muito próximo a estas, pois a vontade se reduz a uma impressão derivada da dor e do prazer, assim como as paixões. Todavia, há uma incerteza, por parte de Hume, quanto a vontade ser reduzida às paixões, pois ele admite que a vontade não é uma paixão. Essa ambiguidade (quanto à redução da vontade à paixão) ecoa sobre a concepção humiana de liberdade – a qual é negada no final.
Na visão do autor, a liberdade é a espontaneidade, a não-coação externa. É colocado que, ao realizar um ato, o homem não é determinado por motivos externos, mas por motivos interiores. Todavia, o homem é sempre determinado em suas ações.
O ponto mais central da tese de Hume, no âmbito da filosofia moral, é o que considera que a razão não pode ir contra a paixão na condução da vontade. Levada às últimas consequências, isto significa que há a vitória do jogo das paixões e, também, significa negar que a razão possa ser prática, que possa guiar e determinar a vontade – esta posição é oposta a que Kant apresenta posteriormente.
Vale expor outro problema que decorre da divisão das percepções em pensar e sentir. Devido a essa distinção, origina-se um problema acerca da moral, o qual consiste em questionar se é através das ideias ou das impressões que os vícios e virtudes são diferenciados e também se é através das ideias ou das impressões que declaramos que uma ação é louvável ou condenável. Isto significa que Hume aponta para a necessidade de se descobrir quais percepções, impressões, ideias acompanham a moralidade. O método experimental é utilizado pelo autor afim de entender a moralidade.
O fundamento da moral é um sentimento. E mais precisamente, o sentimento de prazer ou de dor. Vale ressaltar que o prazer moral é peculiar por ser “desinteressado”. Segundo a teoria humiana, tanto o prazer moral e a quanto dor moral são desinteressados. Esta conotação é inerente ao sentimento moral: o estar “desinteressado”. Isto implica que o bem moral, conquanto ligado à noção de prazer moral, é desinteressado, visa o que é útil, ou melhor, visa o que é útil a todos, visa o que é agradável.
Conforme é afirmado por Hume, a filosofia é dividida em especulativa e prática. A moral liga-se à prática e exerce, naturalmente, influência sobre as ações e paixões humanas. Assim, justifica-se a importância da investigação acerca da moral. A influência da moral sob as paixões e ações humanas é confirmada através da experiência corrente.
Hume negou a razão como fundamento da vida moral, como o que pode mover a vontade. Assim, a moral deve derivar de algo que seja diferente da razão. A moral suscita paixões, impede ou promove ações. E como já foi visto, a razão não pode ser responsabilizada por isso.Por conseguinte, Hume afirma a impossibilidade da razão distinguir o bem moral e o mal moral, pois essa distinção influi nas ações humanas e a razão é incapaz de fazê-lo. O máximo que a razão pode fazer é estar a serviço das paixões, despertando-as e orientando-as, pois é (a razão) inativa em si mesma (jamais pode produzir ou impedir qualquer ação ou afeto). Devido a isso, a razão não pode exercer nenhuma influência sobre as volições, sentimentos e ações. Conclui-se então que as regras da moral não são obtidas através da razão.
A teoria humiana concebe a razão como descoberta da verdade ou da falsidade. A verdade e a falsidade, por sua vez, são consideradas como acordo e desacordo na relação real de ideias e também com relação à existência e aos fatos reais. Assim, o que não é suscetível desse acordo ou desacordo não pode ser objeto da razão humana. Hume expõe que as paixões, volições e ações não são capazes de realizar esse acordo ou desacordo por serem tomadas como fatos e realidades originais – os quais são completos em si mesmos. Ademais, as paixões, ações e volições não acarretam uma referência à outas paixões, ações e volições. Portanto, Hume aponta para a impossibilidade de declarar estas como verdadeiras ou falsas, como contrárias ou conformes à razão.
O argumento exposto prova, de modo direto, que as ações não tiram seu mérito da conformidade com a razão, e nem mesmo retiram da relação de contrariedade com a razão um caráter censurável. O mesmo argumento prova também, de modo indireto, que, como a razão não tem a capacidade de produzir ou impedir, de modo imediato, uma ação de modo a contradizê-la ou a aprová-la, não pode ser vista como fonte da distinção entre o bem moral e o mal moral. Hume propõe que as ações podem ser consideradas condenáveis ou louváveis, mas não podem ser concebidas como racionais ou irracionais. A razão é considerada inativa e, pois, não pode ser a fonte de um princípio ativo, como é o caso da consciência e do sentido moral. A análise de Hume leva-o a concluir que a moral tem influência sobre as ações e sobre os afetos, e devido a isso, não pode ser derivada da razão, pois a razão sozinha não pode influenciar as ações e os afetos, isto é, a razão é serva dos sentimentos. A razão não pode ir contra a paixão na condução da vontade. Isto implica que se negue que a razão tem a capacidade de determinar e guiar a vontade.
Hume afirma que a razão exerce influência sobre a conduta humana de duas formas: “despertando uma paixão ao nos informar sobre a existência de alguma coisa que é objeto próprio dessa paixão, ou descobrindo a conexão de causas e efeitos, de modo a nos dar meios de exercer uma paixão qualquer” (HUME, 2009, p.499). A filosofia humiana considera estes como os únicos dois tipos de juízos os quais podem acompanhar as ações humanas. A distinção entre o bem moral e o mal moral exerce influência nas ações humanas. O contrário seria impossível dentro desta perspectiva, posto que a razão não pode influenciar as ações humanas por si só. Mesmo que a razão e o juízo possam ser a causa mediata de uma ação ao estimular ou dirigir uma paixão, isso não significa que um juízo desta espécie seja acompanhado de verdade ou de falsidade, ou ainda, de virtude ou de vício. Os juízos causados pelas ações do homem também são vistos como incapazes de conferir qualidades morais às ações – as quais são as causas desses juízos.
Ademais, Hume propõe que o sentimento, mas um sentimento de tipo particular, é o que fundamenta a moral. Esse sentimento particular pode ser de dor ou de prazer. A virtude acarreta um prazer de tipo particular e o vício também provoca uma dor de tipo particular. Destarte, ao explicar tal prazer e tal dor, explica-se, consequentemente, o vício e a virtude. Conforme foi exposto por Hume que o prazer moral ou a dor moral são particulares, ambos devem ser minuciosamente diferenciados de todos os outros tipos de prazer e de dor. De modo imediato, somos capazes de distinguir os vários tipos de prazer (com exemplo, somos capazes de diferenciar o gosto saboroso de um bom vinho de uma música boa de se ouvir, não confundimos, pois, os prazeres já que não afirmamos que o vinho é bom de se ouvir, harmonioso e que a música é saborosa). Hume afirma ainda que: “Diante da virtude de uma pessoa, experimentamos um prazer peculiar que nos impele a louvá-la (assim como, diante do vício, experimentamos um desprazer que os impele a censurá-lo)” (REALE, 2005, p.142).
A ética humiana afirma que as impressões derivadas da virtude são agradáveis, já as impressões advindas do vício são desagradáveis. Deve-se ter em vista que os prazeres e as dores são impressões que acompanham o que é considerado bom ou mal. O utilitarismo de Hume afirma que o que é mais belo, o que é mais nobre e o que é mais prazeroso é a ação benevolente, pois ela desperta no homem sentimento de aprovação. Assim, o senso moral é inerente ao sentimento de aprovação do caráter virtuoso. O senso de virtude acarreta uma satisfação, de um tipo particular, ao contemplar um caráter virtuoso. A aprovação quanto ao julgamento que o homem faz acerca dos tipos de beleza, de gostos, das sensações implicam o prazer imediato que estes podem nos causar. Não obstante, o senso moral é o próprio sentimento de aprovação do caráter virtuoso. As virtudes sociais – a benevolência e a justiça – são, segundo o filósofo, os principais objetos de aprovação. A benevolência é concebida como a tendência de se promover o que é de interesse para a espécie humana e é também o que traz felicidade à sociedade. A utilidade da benevolência é justificada nesse ponto.
Retornemos a um importante ponto: o utilitarismo de Hume. Ao investigar sobre os princípios da moral, Hume recorre à dimensão utilitarista com a finalidade de explicar a ética. O útil, no âmbito da moral, é o útil que se estende além de nós, é o que é útil aos outros também, isto é, é o útil público, o qual é útil à felicidade de todos. Hume conclui que:
Desse modo, se a utilidade é uma fonte do sentimento moral e se não consideramos sempre essa utilidade em relação ao eu singular, segue-se então que tudo o que contribui para a felicidade da sociedade granjeia diretamente nossa aprovação e nossa boa vontade. Eis um princípio que, em boa medida, explica a origem da moralidade (HUME apud REALE, 2005, p. 143).
Desta forma, o conjunto da ética humiana é considerado utilitarista, no sentido de que o que move nosso assentimento não é o útil particular, mas o útil público, ou seja, o que é útil à felicidade de todos.
Como se pode notar, Hume defende a ética das virtudes e como qualidades pressupõe: a benevolência, a virtude, a caridade, a generosidade, a clemência, a moderação, a equidade, a perseverança, entre outras mais. Essas qualidades são recomendadas por serem consideradas úteis.
Enfim, as noções de prazer (moral), dor, (moral) vícios, virtudes e de bondade estão intimamente ligadas. A noção de prazer moral liga-se à noção de virtudes, posto que a impressão que se tem das virtudes é a de prazer moral. Já as noções de prazer moral e de virtude, por sua vez, mantém relação com a bondade (bem moral) devido ao fato de que a bondade – enquanto virtude – desperta no homem o prazer e também o bem moral ligado ao prazer, visa o que é útil a todos. A noção de vício, por sua vez, liga-se à noção de dor. Vale ressaltar que as dores e os prazeres são impressões as quais acompanham o que é considerado mal (no caso do vício) ou acompanham o que é considerado bom (no caso da virtude).
Fica, pois, evidente o modo como Hume concebeu as noções de vício e virtude de acordo com as noções de dor moral e de prazer moral, bem como a relação que essas noções (virtude e prazer moral) guardam com a noção de bondade, isto é, bem (útil).
Referências bibliográficas:
HUME, David. Tratado da natureza humana. Trad. Déborah Danowski, São Paulo: Editora Unesp, 2009.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: de Spinoza a Kant, v. 4. São Paulo: Paulus, 2005.