Aristóteles inicia um novo modelo para a explicação do que fundamenta a realidade, de qual seria a sua causa primeira, e, ainda, se sua causa primeira seria material ou formal. No livro Metafísica A(I), há um processo de transição entre o que seria do campo da física e o que seria do campo da ciência do ser enquanto ser. Neste livro, o Estagirita chegou à noção de ciência superior, teorética e universal que trata dos princípios primeiros e das causas. Contudo, há a necessidade de se esclarecer que essa ciência não seria a teologia, pois, de certo modo, a teologia trata de gêneros determinados do ser, enquanto a ciência universal tem por objeto o ser enquanto ser.
Então, Aristóteles questiona: “Há uma ciência única de todas as essências, ou muitas?” (Met., B(II), 997a 15). A resposta dada por ele, no livro Γ, capítulo 1, foi de que existem tantas partes na filosofia quanto existem essências. O ser divide-se, originariamente, em gêneros e assim a distinção das ciências ocorre de acordo com a distinção desses gêneros. Dessa forma, deve haver uma filosofia primeira e uma filosofia segunda. Ocorre, pois, entre as ciências, uma hierarquização dos saberes de modo que a teologia seria a filosofia primeira, as matemáticas estariam numa localização intermediária, e a física seria a filosofia segunda. Essa hierarquização ocorre conforme os gêneros de ser são mais eminentes e menos eminentes. Assim, a teologia é considerada como a ciência mais eminente por tratar de objetos de gêneros mais eminentes: trata de realidades separadas e imóveis e dos astros (seres sensíveis estáveis). Por conseguinte, o divino está presente na natureza imóvel e separada. A ciência mais eminente deve-se voltar ao gênero que é princípio de todo o resto. Já as matemáticas tem por objeto os seres não separados e imóveis e, como afirma Aristóteles, a física tem por objeto seres separados móveis. Contudo, essas ciências tem objetos determinados em gêneros de ser determinados, particulares. Elas demonstram atributos da essência, mas não a essência mesma. Mesmo a teologia tratando da essência do divino, parece não escapar à condição de ciência particular por não tratar do ser enquanto ser, haja vista que “Ela é universal porque primeira” (Met., E(I), 1026a 30-32) e somente nesse sentido deve ser considerada como universal.
Por conseguinte, Aristóteles busca pela ciência que trata do ser enquanto ser, ou seja, do ser tomado de forma absoluta, a ciência das causas primeiras que fundamentam a realidade. De acordo com Aubenque (2012), essa ciência permanece inominável. A ciência do ser enquanto ser, apesar de inovar com relação ao que foi apresentado em Metafísica A(I), continua a busca pelas causas e princípios supremos. Entretanto, essa busca se dá de maneira diferenciada enquanto se liga à noção de realidade que é por si. Assim, os princípios e causas devem ser tratados sob o ponto de vista do que é real por si, e, ainda, devem ser buscados de acordo com o ser enquanto ser ou de acordo com aquilo que faz com que algo seja ou exista por si. O Estagirita afirma que existe uma única ciência de todas as coisas e esta diz dos seres enquanto seres. Essa ciência, por sua vez, tem por objeto aquilo que é primeiro, ou seja, aquilo de que depende todo o resto e pelo que todo resto é denominado. Logo, cabe ao filósofo conhecer as causas e princípios da substância. Pode-se notar que há uma ciência única quanto ao gênero que estuda todas as espécies do ser enquanto ser.
Contudo, no livro Ε, o Estagirita contrapõe as ciências particulares e a ciência do ser enquanto ser, e afirma que “Há uma ciência que estuda o ser enquanto ser e seus atributos essenciais” (Met., Γ(I), 1003a 21). Esta possui duplo papel: o papel de estabelecer os princípios que são comuns a todas as ciências e o papel de justificar cada ciência através da elucidação do estatuto da existência própria de seu objeto. A ciência do ser enquanto ser, de acordo com Aubenque (2012), não possuía ancestrais e não teve, de forma imediata, posterioridade, contudo provocou (após sucessivas ressurreições), no campo filosófico, uma reestruturação por tratar do ser enquanto ser e não mais somente do ente particular e material como faziam alguns de seus antecessores.
No livro Ε, ocorre a classificação das ciências e fica elucidada a oposição entre a ciência do ser enquanto ser e as ciências particulares. Aristóteles discorre, também, sobre a distinção dos diferentes sentidos de ser. Visto que as ciências particulares são “ignorantes de seu fundamento, porque, demonstram os atributos de uma essência, mas não da essência mesma” (AUBENQUE, 2012, p. 43), deve-se admiti-las, inicialmente, como simples hipóteses. Conforme as pesquisas das ciências particulares não se ocupam do ser enquanto ser, ou seja, do ser em seu sentido absoluto, não se ocupam da essência, mas dela partem e demonstram – com maior ou menor grau de rigor – as propriedades que pertencem ao gênero de ser do qual se ocupam. Estas ciências que tratam de determinados gêneros de ser não dizem se existem realmente os gêneros de ser os quais tem por objetos. No livro em questão, Aristóteles divide o conhecimento racional em conhecimento prático, conhecimento produtivo e conhecimento teorético. A filosofia teorética assume, pois, três ramos: Teologia, Matemática e Física.
De acordo com Aristóteles, o ser possui múltiplos significados, mas sempre em referência a uma unidade e a uma realidade determinada. O Estagirita identifica o ser ao um, portanto, o ser e o um são uma mesma coisa e uma realidade única. A substância de cada coisa é uma unidade, mas não de maneira acidental. Algumas coisas são ditas ser – Οὐσία (o que implica a noção de essência e esta, por sua vez, liga-se à definição de algo) – e outras são suas afecções, são vias para a substância, ou são corrupções, privações, qualidades, causas produtoras ou geradoras tanto da substância quanto do que se refere à ela. Todos os significados dos termos sobre os quais se pensa são remetidos a um primeiro significado. Aristóteles ressalta a necessidade de se distinguir em quantos modos se entende cada um desses significados. Deve-se, pois, referir-se ao que é primeiro no âmbito de cada um desses grupos de significados, e mostrar qual é o modo que o significado do termo se refere ao primeiro: alguns significados do termo se referem ao primeiro enquanto o tem, outros significados se referem ao termo por produzi-lo. Assim, a ciência inominável, tem como tarefa ocupar-se dessas noções e da substância.
De acordo com o Estagirita, existem propriedades peculiares quanto ao ser enquanto ser e é sobre estas que o filósofo deve buscar a verdade. Logo, cabe à ciência do ser enquanto ser o estudo das substâncias, suas propriedades, os contrários dessas substâncias, os anteriores e posteriores às mesmas, os gêneros e espécies, o todo e a parte.
Ao se investigar a natureza do ser, busca-se pela definição, e essa, por sua vez, busca a essência. O ser é referência para diversos acidentes ou para diversas formas de predicação. Para Aristóteles, os diversos modos de atribuições ou de predicações a um ser são chamadas de categorias. Essas categorias são apresentadas em dois grupos: as predicações acidentais e as predicações que definem essencialmente a coisa. As predicações acidentais podem ser retiradas da coisa sem que sua essência seja alterada, contudo, as predicações essenciais, se forem negadas ao ser, faz com que ele seja eliminado.
O ser não pode ser atribuído a outro ser, ou seja, o ser nunca é propriedade pois é ele que sustenta as predicações. Ao se estudar o aspecto mais essencial da realidade, procura-se o que tem primazia sob o ponto de vista ontológico, lógico e epistemológico. Conforme o pensamento tem suas regras embasadas em uma forma que se imprime sobre as coisas, caso não houvesse realidades sob a forma de sujeitos – como sentido primeiro de ser ao qual todas as predicações referem-se – não seria possível que o raciocínio fosse iniciado pois não haveria base ou princípio para provar, de modo verdadeiro, sobre os fatos do mundo. Dessa forma, pode-se notar que a substância possui um lugar primordial na ciência do ser enquanto ser: ela é o referencial último para as predicações por se tratar da coisa primeira. Ela pode ser uma forma de predicação ou uma categoria, contudo, é primeira. Como o que é primeiro é a substância e como a substância é um ser e quando se busca pela substância busca-se pela essência (e há uma ligação desta com a definição), se não houver a substância, não haverá predicações, não haverá a ciência do ser enquanto ser e, ainda, não haverá a realidade a ser buscada.
Durante este breve trabalho, elucidamos qual foi o caminho tomado por Aristóteles para esquadrinhar a ciência do ser enquanto ser e seus objetos.
Referências Bibliográficas
AUBENQUE, P. O problema do ser em Aristóteles. São Paulo: Ed. Paulus, 2012
LEAR, J. Aristóteles: o desejo de entender. São Paulo: Discurso Editorial, 2006.
REALE, G. Metafísica, v. II. São Paulo: Edições Loyola, 2005